sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Perdoando Deus

”(...) Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou de igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. (...) Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre (pp.41-42).

(...) E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. (p.42).

(...) Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte ” (pp.42-43).

(...) Talvez eu tenha de chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. (...) Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe” (pp.44-45).

* Do fantástico livro "Felicidade Clandestina", de Clarice Lispector.

8 comentários:

Dois Cafés disse...

nossa, eu tinha separado um trecho dentro desse.

esse perdoar a Deus é um perdoar a mim mesma, não?

você leu o livro todo?

beijos

Luciane Slomka disse...

Eu entendo assim, Dani. Perdoar a si mesma, perdoar essa incapacidade de nos sentirmos divinos, no sentido de conexão com tudo o que há de bom e mau em nós. Li quase todo. Esse conto, aquele "o ovo e a galinha" e o "felicidade clandestina" para mim sãos os top 3 do livro!
Tu já leu? aliás, acho que em março ou abril a peça dela "Simplesmente eu" com a Beth Goulart vai estar aí em SP. Pelamordedeus não perde!!! Beijão!

Pedro disse...

Adoro esse livro. Clarice é sempre maravilhosa. Já postei um trecho de "Máscaras" no blog.

Nádia Lopes disse...

Ah,o título felicidade clandestina já é por si só maravilhoso, algo nas palavras dela e no olhar sempre me desconsertam, como se ela fosse de uma profundidade que eu jamais teria coragem de experimentar ou de uma solidão escolhida, qualquer coisa assim que eu admiro muito, grata por me lembrar...
beijoooo - bom carnaval!

Sonia Pires disse...

Clarice Lispector é tudo de bom!!
Esse livro é lindo!

Talita Prates disse...

Lu, querida,
tua postagem "dá a mão" à minha lá no História...

Eu sinto uma vontade enorme de agradecer a Clarice...

Um bjo!

Dona ervilha disse...

Clarice Lispector é Clarice Lispector. Acho que a gente nunca entende bem e também nunca se cansa de tentar e gostar.
Fiquei feliz porque encontrei muitos livros dela aqui em Portugal.
Beijo.

Anônimo disse...

Exelente escolha de texto, otima reflexao...