Ontem sonhei com minha mãe. Sonhei que ela
ainda não havia morrido, mas que já estava prestes a partir. Eu estava
preocupada em enxergá-la, em saber como estava se sentindo - se tinha medo, se queria
falar sobre isso. Em nenhum dos sonhos que já tive com ela nesses 3 meses consigo
ter certeza se posso ou não ajuda-la. Não sei se a ajudei quando ela partiu.
Fui eu quem estava ao seu lado no momento final. Ela respirava com dificuldade.
Cada inspiração era um esforço descomunal. Teimava em permanecer viva. O tempo
entre uma respiração e outra foi crescendo e eu percebi o que estava
acontecendo. Só pensava nas palavras “Pode ir, mãe. Pode ir, mãe”. E ela foi. E
ainda assim não sei se a ajudei. Não sei se conversei com ela o tanto quanto eu
gostaria para poder me despedir. Era uma sexta-feira, 18 horas e 30 minutos.
O adeus nunca parece o suficiente. Eu
conversei com ela muitas vezes sobre isso, e sei que ela sabia que estava
prestes a morrer. Olhando para trás fica difícil não pensar que algo a mais poderia
ter sido dito, que algo a mais não deveria ter sido feito. Eu pedi a ela para
que, caso houvesse algo além deste mundo, ela me avisasse, que se comunicasse
comigo. Até agora o único sinal são os sonhos recorrentes. A Psicologia explica-os
como uma forma de elaboração do luto. Eu não quero explicação nenhuma, mas sei
que esses sonhos ajudam-me a suportar o nunca mais. Somos tão fracos, tão despreparados para o
não existir. Eu ainda venho aprendendo a conceber essa impossibilidade. Perder a possibilidade da imaginação do
reencontro é a pior das saudades. Era uma sexta-feira, 18 horas e 30 minutos.
Nossa
relação não era como nos filmes, nem como nas novelas. Houve conflitos, diferenças,
brigas e uma luta enorme da minha parte para adquirir minha autonomia
emocional, para me descolar de um modelo que não me servia, como uma roupa
larga demais que insistimos em usar e faz com que sumamos em meio aos panos
todos e percamos nossos contornos. Eu me agradeço por ter feito esse desencaixe
emocional antes dela partir. Quando eu estava agachada ao lado dela naquela
cama dizendo “Pode ir, mãe. Pode ir”, eu estava dando adeus a Sara, não a
Luciane. Era sexta-feira, 18 horas e 30 minutos.
Mas a
Luciane que fica sente saudades. Uma saudade que vai se ajustando e transformando
com o passar do tempo. Sei que hoje ela ainda é muito física. Parece uma longa viagem
das tantas que ela fez ao longo da vida e da qual logo estará de volta. E a
realidade confronta-me com um tapa forte na cara, arrasta-me para o prosseguir,
nessa vida que muitas vezes arranca-me qualquer sentido maior. E me pego a
questionar porque essa vida maluca, porque tudo isso que fazemos, trabalhamos e
corremos, dormimos mal e amamos mal. Era sexta-feira, 18 horas e 30 minutos.
Eu gostei
dela ter falecido no final da tarde. Tenho uma teoria completamente empírica
que pacientes terminais não terminam pela manhã. A grande maioria morre no
final de tarde e principalmente à noite. A manhã não pode conter a morte,
porque a manhã é esperança, é recomeço, é vida. A manhã é o amanhã, mesmo nos
acusando que acaba de ter enterrado o ontem. Manhãs não matariam, jamais.
Manhãs podem empurrar, esmagar, sufocar, às vezes, mas jamais matar. Eu amo as
manhãs que me empurram, mesmo me perguntando em muitas
delas o porquê disso tudo, o porquê do perder, o porquê desse maldito nunca
mais que me faz perder a compreensão de tudo que diz fazer sentido.