quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Olhos mágicos


Agora minha porta tem olho mágico. Fazia mais de um ano que, após uma reforma no apartamento, estávamos com um pequeno orifício em nossa porta à espera de um olho mágico.
 
Não sei porque nesse tempo todo nunca pensei nessa necessidade, nunca me incomodei com aquele pequeno buraco na minha porta. Então, de presente de Natal um vizinho, aparentemente "do nada", presenteia-nos com esse pequeno objeto mágico. Cheguei em casa e já estava colocado. 

Tanta diferença ao tapar um pequenino buraco. 

Foi como se naquele instante minha porta tivesse mudado de status, como se agora ela fosse uma porta de verdade. Verdade também que praticamente não usamos mais olhos mágicos porque os interfones já nos antecipam quem chega e ninguém mais toca a campainha sem ter se anunciado antes.
 
Mas a questão é: Por que aquele furo tão pequeno nunca me incomodou mas quando ele foi devidamente tapado me fez tamanho bem, como se minha casa estivesse mais cuidada? Por que menosprezei aquele furo? Por que me acostumei com minha porta porosa? 

Essas pequenas civilidades tão mundanas parecem dar um complemento a nossos rombos internos. Era só um pequeno buraco, pouquíssimas vezes olhei através dele - e enxergava mais farpas de madeira do que qualquer outra coisa - assim como poucas vezes olharei pelo meu novo olho mágico. Só sei que minha porta agora parece mais inteira, enquanto sigo buscando meus próprios olhos mágicos para tantos pequenos furos que ainda carrego dentro de mim.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Tornar-se Pessoa

Hoje pela manhã eu li a crônica da Diana Corso, psicanalista gaúcha, chamada "Escutando os fogos", onde ela trata sobre a euforia quase imposta e obrigatória em tempos de festas de final de ano. Concordo com ela que fechamentos - sejam quais forem - são complexos e exigem reflexão e por que não um pouco de silêncio também. Mas o que mais me chamou a atenção em seu texto foi quando ela rememora seus Natais passados com a avó e fala de uma caneca da casa dos pais que continha uma frase que ela jamais esqueceu. E então, falando da importância dessas primeiras frases inesquecíveis de nossas vidas, ela nos brinda com o seguinte pensamento: "Pouco valorizamos a força das primeiras palavras que decodificamos por conta própria, saboreadas com paladar virgem. A leitura das primeiras frases, então, impõe verdadeiras jornadas filosóficas aos iniciantes." 

Essa própria frase me remeteu imediatamente ao meu primeiro poema da infância decorado, instintivamente. Até então eu sempre dizia que era uma frase e nunca recordava exatamente quem a havia dito ou escrito, nem por que. Mas eu adorava repeti-la, ainda adolescente, especialmente por achar lindo poder saber alguma frase poética de cor. Lendo Diana e a sua frase da caneca, lembrei da minha frase, que na verdade é um poema de ninguém menos do que Fernando Pessoa, que diz assim:

"Teu olhar não tem remorsos
Não é por não ter que os ter,
É porque hoje não é ontem
e viver é só esquecer."

Tenho absoluta certeza de que quando descobri esse poema e quando o decorei, não tinha nem vaga ideia de tudo o que ele representava. Nem tinha ideia de quem era Fernando Pessoa. Não sei que força essas palavras exerceram sobre meu paladar virgem, como Diana tão bem colocou. Viver é só esquecer, disse ele, quando eu tão jovem era. Quando eu ainda nem contabilizava memórias suficientes para armazenar em todo meu espaço. 

Hoje entendo que viver é esquecimento. Mas entendo também que para esquecer é preciso ter a capacidade de lembrar, é preciso ter a capacidade de armazenar lembranças. E sei também dos remorsos, dos meus, dos nossos, dos remorsos que se tornam rancores, dos remorsos que se tornam sorrisos e dos remorsos que viram enormes saudades. Hoje não é ontem, e o amanhã nunca chega... Quanta coisa me disse Pessoa para ouvidos ainda tão iniciantes, ouvidos brincalhões e um pouco surdos também - ainda bem. Jamais esqueci da primeira frase que eu na vida decorei. 

Irônico eu decorar um poema que fala justamente que a vida é esquecer. Irônico eu começar a tentar me tornar pessoa decorando Pessoa. Irônica a infância ser o ontem que precisamos forçosamente esquecer. Irônica vida, tão bela, tão esquecida, tão ontem que não mais existe. Tão amanhã que nunca chega. 

Link para a crônica da Diana: (http://www.marioedianacorso.com/escutando-os-fogos)

sábado, 7 de dezembro de 2013

Um poema para Ana Cristina Cesar














Ana diz "angústia é fala entupida"
Eu, que renasci de paradoxos,
Hoje entendo que aprender a mentir
ainda é o melhor caminho para descobrir-se verdadeiro
Entendo que mastigar os cabelos molhados é comer-se um pouco,
ser capaz de sentir o gosto de si e de tudo aquilo que nos voa

Ana diz "angústia é fala entupida"
Eu digo, parida da dúvida, escondida nas horas
Que consegui enfim podar minhas raízes e que por ela, agradecida,
Ainda hei de aprender a matar-me sem precisar morrer.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Correios

Por certo eu não preferiria ser invólucro
sem essência, mas cansa ser só conteúdo
sem envelope que me envie de volta
Envelope importa mais do que a carta
Carta sem envelope é folha em branco
Carta sem envelope é língua sem beijo.
Há tempos não me escrevo, 
Reenvio

sábado, 30 de novembro de 2013

O drama é uma dor que não se vê


Não há pior drama do que a impossibilidade de se viver um drama.

Em meu trabalho como psicóloga especialista em Oncologia chega a saltar aos olhos a quantidade de pacientes com câncer de mama que procuram pelo apoio psicológico justamente por esse motivo: O da impossibilidade de sofrer porque deveriam agradecer.

Eu explico: são pacientes oncológicas que quase não podem ser rotuladas como tais. Seus casos são bem iniciais (situação essa que, felizmente, tende a ser cada vez mais frequente) porque a doença foi detectada precocemente. Isso dá a elas a feliz possibilidade de não precisarem realizar a quimioterapia, tratamento mais conhecido, mais radical e por isso o mais temido em termos de efeitos adversos. 

O mais conhecido destes efeitos é a perda do cabelo. Muitas vezes é nessa hora que a paciente parece virar de fato, paciente. É quando ela está visivelmente em sofrimento para o meio externo, momento em que as pessoas então passam a protegê-la, questioná-la sobre sua condição emocional, poupa-la de determinados assuntos ou situações porque ela "precisa de apoio". 

Mas e quem não usa lenço ou chapéu? Quem não carrega nenhuma denúncia visivel em seu corpo de que algo se passa com ele? Quantas pessoas que você nem imagina cruzam a rua por você diariamente e podem secretamente estar lutando contra uma doença grave, seja ela crônica ou aguda, letal ou não. O fato é que essas pacientes buscam o apoio emocional justamente para poderem ter o espaço, o direito de poder sofrer. Porque familiares e pessoas a sua volta não permitem, não admitem (por fragilidade e não má intenção) terem de se deparar com a tristeza, porque essa pacientes precisam, ao contrário de sofrer, agradecer a "sorte" de terem detectado a doença bem no início e não precisarem fazer quimioterapia.

Sorte? Sorte é de quem passa pela vida sem ter de se confrontar com sua finitude dessa forma tão direta, tão sem trégua que é a vivência de um câncer. Tem aprendizados? Evidente. Muitas vezes é só vivenciando algo dessa magnitude que muitas pessoas conseguem perceber o quanto somos onipotentes e por isso perdemos tanto tempo e tantas oportunidade pela nossa fantasia de eternidade. Mas o que essas mulheres vêm buscar quando buscam um atendimento psicológico me parece algo que está em falta em vários âmbitos e aspectos: a possibilidade de se estar em sofrimento mesmo sem ter "motivo".

Mas quem saberá de fato qual é o verdadeiro motivo que justifica um sofrimento, um choro compulsivo? Quem sou eu ou você para julgar alguém que chora porque manchou de forma definitiva sua blusa caríssima preferida? Por que só quem está morrendo teria o direito de chorar? Por que temos que esperar as coisas estarem péssimas para chorar e então, seguindo a mesma lógica, espetaculares para termos o direito de celebrarmos com alegria desenfreada? 

Medidas, limites,... Reações não tem fórmulas nem protocolos. Eu me concedo o direito de chorar por cada uma de minhas dores, o direito de me arrepiar de alegria com o mais bobo dos acontecimentos. Porque a vida não traz nenhuma garantia de que termine bem; nem mal. Mas termina. Essa é a certeza. Então esteja certo de chorar ou sorrir quando quiser, porque querer já é um pouco precisar.

domingo, 24 de novembro de 2013

Peças


Enquanto o mundo anda maquiado, eu sigo com a cara lavada.

Enquanto outras unhas estão sempre pintadas, as minhas vão se quebrando cruas, por aí. 

Já faz tempo que não sei atuar, que não sei dançar conforme a música, que não sorrio com facilidade. 

Ainda assim, fico olhando para esse mundo perolado e sei que sou parte dele, que faço parte do grande teatro e que talvez tudo isso que sinto não passe de uma enorme vaidade disfarçada de comiseração.

Mas não sei de festa alguma; sei mesmo é da peça de nossos tempos, onde tudo parece palco sem bastidores. Ninguém esconde mais nada dos outros para seguir escondendo de si próprio. E talvez eu mesma, com essa necessidade de me esconder e reencontrar minhas coxias, de abandonar por um tempo esse grande palco, seja a maior e mais astuta atriz que já conheci.
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domingo, 27 de outubro de 2013

Gérberas mortas


Chego em casa e vejo tuas gérberas começando a morrer. Elas tem a cabeça baixa, derrotadas da mesma maneira que eu me senti segundos atrás quando fechei a porta para o mundo lá fora. Caminho em direção ao quarto te vejo ali deitado, inerte. Cansado de nossas batalhas verbais, talvez exausto de tua própria vida, de tuas próprias brigas. Sei que sofres tanto quanto eu, que usas tua capacidade de fuga tanto quanto eu. Ofereço o melhor sorriso possível, quem sabe um copo de coragem, mas nem recusas, não respondes, apenas me sorri de volta. Mas quando enruga os teus olhos percebo, devido ao erguer dos músculos faciais, que eles se encolhem e testemunho ali um milagre nunca visto naquele rosto. Um milagre pelo qual eu sempre pedi, sempre desejei que estivesse ali, mas nunca verbalmente requisitei, pois há coisas que não são passíveis de pedido, simplesmente precisam acontecer por conta própria: Eu vi lágrimas em teus olhos. Sabia o que aquilo significava, sabia que aquele autorizar de lágrimas não era para mim, era para ti mesmo. Alforria para tua solidão.

Te amei instantaneamente naquele segundo, amei aquelas lágrimas acumuladas em tuas pálpebras cansadas. Elas nem precisaram cair. Era só uma alegria por saber que existiam e estavam ali. Sorri mais uma vez, mas desta vez um sorriso honesto, também um fenômeno do qual eu não me recordava de reproduzir. Atiro um beijo com minha mão direita, suada por andar sempre tão fechada, tão apertada. Não sei o que tu compreendeu desse beijo.

            Deixo a porta do quarto em lágrimas, estas sim sempre estiveram comigo, não sei se sabias. Entendi a resposta para a minha chegada, entendi a resposta para as tuas gérberas: lágrimas. Simplesmente lágrimas. Derramei então a mais pura água sobre nosso vaso esquecido, adorno protocolar. 


Deitei-me no sofá, exausta, longe de ti e ao mesmo tempo mais próxima do que posso me recordar, e vou adormecendo, observando atentamente aquelas gérberas murchas, torcendo para que elas me despertem amanhã.