Qual foi a primeira palavra que vocês leram aqui? Amor?
Morte? A morte? Como pode amor e morte se unirem de tal forma? Serão
sentimentos opostos? Certamente não. E hoje, meu enfoque ao tratar de um tema
tão amplo, tão multifacetado mas ao mesmo tempo tão singelo e simples será
abordar o amor sob a ótica da morte, o amor como companheiro inseparável da
vida e da morte.
O dicionário me surpreendeu com os seguintes significados
para a palavra amor: 1 Sentimento que impele as pessoas para o que
se lhes afigura belo, digno ou grandioso. (Ora, o que será belo, digno ou grandioso?)
2 Grande afeição de uma a outra pessoa de sexo contrário. (sexo
contrário? Como?) 3 Afeição, grande amizade, ligação
espiritual. 4 Objeto dessa afeição. (Sim, o amor requer um
alvo)5 Benevolência, carinho, simpatia. 6 Tendência
ou instinto que aproxima os animais para a reprodução. 7 Desejo
sexual. 8 Ambição, cobiça: Amor do ganho. 9 Culto,
veneração: Amor à legalidade, ao trabalho. 10 Caridade. 11Coisa
ou pessoa bonita, preciosa, bem apresentada. 12 Filos Tendência
da alma para se apegar aos objetos.
Quantas palavras importantes e que nos fazem pensar. Mas
nenhuma dessas definições consegue para mim, defini-lo. Porque ele é
indefinível. Amor é afeição, amizade, ligação e também poder e cobiça. Flávio
Gikovate escreveu há pouco tempo o texto “O amor no terceiro milênio”, onde diz,
entre tantas coisas interessantes, que a palavra
de ordem deste século é parceria. “Estamos trocando o amor de necessidade pelo
amor de desejo. Eu gosto e desejo a companhia, mas não preciso dela- o que é
muito diferente.”
Fato, o amor mudou.
Nossas exigências também mudaram e nossos medos também. Realmente, parece que
ninguém mais necessita de um amor para ser feliz. Mas será mesmo? Será que não
seguimos, em nossa essência, os mesmos apaixonados dos versos de Luiz de
Camões, feridos de uma dor que não se sente, padecendo de um contentamento
descontente? Acho que estamos em uma década de negação da necessidade e da
dependência. Parece fraqueza precisar. Eu entendo a necessidade como uma luta
contra a morte. Não a morte orgânica, concreta, mas sim a morte emocional,
morte da metáfora. Precisar nos faz inventar, e é inventando novas formas de
amor que nos tornamos eternos.
Morre-se de amor em
filmes, na literatura, nas canções. O amor precisa da morte assim como a morte
precisa da vida. E por mais que pareça incompatível, a morte está impregnada de
amor e o amor impregnado de morte. Se não soubéssemos que vamos morrer,
viveríamos mal, e ao não saber que temos um prazo de validade, viveríamos como
se fôssemos eternos. E mesmo sabendo, já vivemos dessa maneira, já somos tão
descuidados com nossos afetos... Com o amor a coisa funciona mais ou menos do
mesmo jeito. Precisamos temer que acabe para cuidar e querer mantê-lo, cuida-lo,
mas também não podemos a toda hora temer que acabe e que vamos perde-lo pois do
contrário amar seria tarefa insuportável e torturante. Ufa. Como amar e
precisar sem sucumbir?
Talvez Hilda Hilst me
ajude com essa:
“Estou viva.
Mas a morte é música.
A vida, dissonância.
Minha alegria é como
Fim de outono porque
Tive nas mãos ainda
flores
Mas flores estriadas de
sangue.
Há cristais coloridos
Nos teus olhos.
Vida viva nos teus dedos
Estou morta
Mas a morte é amor.”
Estou morta mas a morte
é amor. Amar é um pouco morrer-se, abandonar-se à sorte de se ver no outro. E
como assusta essa entrega. Assusta porque enxergamos no outro o que somos, e
independente de isto ser algo bonito ou não, é difícil ver uma parte nossa detendo
tanto poder sobre nós e com vida própria, autônoma. A impotência de percebermos
que não podemos controlar nem nosso próprio pedaço que demos aquele outro - e
na verdade a gente esquece que “deu” esse pedaço, parece mesmo é que ele nos
foi tomado por esse alguém que antes era um desconhecido. Então eu tento
controla-lo. Tento dominá-lo. Morrendo de medo, morrendo de amor, morrendo de
ciúme quando não me sinto exclusiva. O ciúme, assim como o amor, também é uma
morte. E ao meu ver, uma morte ainda pior do que a verdadeira. O ciúme, nos diz
Roland Barthes, é um sofrimento para quem o sente, mais do que para qualquer
outro. Diz ele: “Como ciumento, sofro 4 vezes: porque sou ciumento, porque me
reprovo por sê-lo, porque temo que meu ciúme fira o outro, porque me deixo
sujeitar por uma banalidade: sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser
louco e por ser comum”.
Ciúme também é morte
porque no momento em que estamos enciumados matamos a dupla que formamos com o
nosso ser amado e inserimos uma terceira pessoa, que nem mesmo é aquela para
qual dirigimos toda nossa hostilidade. A morte é de nossa imagem perante nós
mesmos. Quando sinto ciúmes estou me matando, estou matando um sentimento de
entrega e afeto e inalando perda. A dupla vira um trio e esse triangulo perfura
minha identidade de apaixonada. Não acho saudável a ausência completa de ciúmes,
até porque quem ama sempre teme a perda. Um dos meus filmes favoritos de todos
os tempos, é o “ADAPTAÇÃO”, onde Nicholas Cage interpreta irmãos gêmeos,
escritores. Um é o irmão artista, famoso, que deu certo. O outro é o irmão
tímido, introspectivo, com a autoestima derrubada e frustrado, sempre
enxergando no irmão o retrato do que nunca conseguiu se tornar. Então, na minha
cena favorita, ambos estão se escondendo de um casal em um pântano. O irmão até
então corajoso e destemido aparece apavorado, sem saber o que fazer, mencionando
seu grande medo de morrer. Ele diz:
“ - Não quero morrer,
Donald, não quero morrer! Eu desperdicei minha vida.
- Não diga isso, e você
não vai morrer!”
- Desperdicei,
desperdicei... Eu te admiro, Donald. Sabia? Passei a vida paralisado, me
preocupando com o que as pessoas pensavam de mim, e você, você tão distraído...
- Não sou distraído.
- Não, você não entende.
Isso é um elogio! Uma vez na escola eu estava vendo você pela janela da
biblioteca. Você conversava com a Sarah Marsh.
- Ah, eu estava tão
apaixonado por ela....
- Eu sei. E estava
paquerando ela. Ela estava sendo gentil com você...
- Eu me lembro disso...
- Quando você saiu, ela
começou a debochar de você com uma amiga. Foi como se elas estivessem rindo de
mim. E você, não sabia de nada...parecia tão feliz...
- Eu sabia. Eu ouvi tudo
que elas falaram.
- Então por que estava
feliz?
- Eu amava Sara,
Charles. Aquele amor era meu. Pertencia a mim. Nem Sara tinha o direito de me
tirar ele. E eu posso amar quem eu quiser.
- Mas ela te achava
patético!
- (Ele ri) Bom, isso era
problema dela, não meu. VOCE É O QUE VOCÊ AMA, NÃO O QUE AMA VOCÊ.
Nós somos o que amamos,
não o que nos ama. E isso nos dá poder, mesmo que nosso amor esteja depositado
no outro, ele é nosso, está em nós e por isso nos pertence.
Eu trabalho ha quase dez
anos com pacientes oncológicos em um hospital. Lido com perdas e mortes reais.
E o amor está ali o tempo todo. Amor vivido, amor escondido, amor subjugado,
amor mal vivido. Na hora em que vemos nossa finitude nos encarar, é preciso
recorrer a essa capacidade de amor que temos, uns mais outros menos. E nem por
isso, nem mesmo frente ao caos, precisamos sucumbir. Porque o que afoga não é a
enchente, o que afoga é não saber nadar. Para quem não aprendeu a nadar até
lago parado afoga. E o amor é isso, lago parado e oceano ao mesmo tempo, às
vezes calmo, às vezes com correntezas. A questão é a nossa capacidade de estar
sempre aprendendo novas técnicas para nadar em mares tão bravios. Vejo pessoas
morrendo mal. E chamo morrer mal de morte com relações vazias, com coração
vazio. Pessoas que morrem sem terem se despedido, sem nunca terem conseguido
dizer que amam aqueles que amam. Isso para mim é o maior dos desamores.