sexta-feira, 9 de março de 2012

A vida repentina

Eu quero meus de repentes de volta, e que tragam consigo surpresas, pequenos sustos eufóricos e fôlegos suspensos. Roubaram-me os repentes, e me deram em troca uma vida previsível, com eventos marcados e necessários para instalarem uma tal de ordem. Não mando em nada, mas também não obedeço.

Vou vivendo o que há e o que dá: toda vida de por enquantos precisa de uma porção dos de repentes

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Infância é dentro (Por Charles Kiefer)


Infância não existe, infância é uma invenção de adulto.

Quando leio sobre a infância de alguém, sempre me pergunto: E como seria a descrição desse passado idílico se quem a tivesse escrito fosse uma criança?

Talvez, para uma criança, o mar não seja tão belo, a praia não seja tão amigável, a noite não seja tão pacífica...

Adulto, percebo agora que não tive essa infância maravilhosa que todos tiveram. Só fui conhecer o mar aos vinte e dois anos. E o que senti foi uma angústia muito grande, aquela água não tinha fim, aquela areia irritava-me, aquele sol torrava a minha pele, produzindo-me grandes febres e dores, atenuadas por pomadas e insônias.

A infância que tive foi atrás de uma enxada, capinando inço nas lavouras de soja dos meus avôs, catando osso para vender no frigorífico, lavando dúzias de roupas por semana para que minha mãe liberasse, a mim e a minha irmã, as entradas da sessão da tarde de domingo no Cine Imperial, no centro de Três de Maio, que hoje deve ser uma loja de produtos da China.

Que infância poderia eu inventar agora?

Na época, nem me dei conta que fazia trabalho infantil, que eu podia estar na praia, besuntado de óleo. Até por que a praia ficava a mais de 600 quilômetros de distância. Mas havia os banhos de rio e de lagoas, as caçadas, as pescarias.

E havia as noites de lua cheia, de calor e de luciérnagas (a Argentina ficava logo ali), quando contávamos, uns aos outros, eu e meus tios, histórias de assombração.

Aquilo, sim, é que era infância, melhor que filme de Harry Potter!

Aquelas noites, povoadas de mulas sem-cabeça, boitatás, lobisomens e outros seres imaginários que nem Jorge Luis Borges foi capaz de imaginar, são o centro disso que, adulto, chamo de infância.

E essa infância, que construo do presente para o passado, que afeito, que mistifico, que atenuo ou exagero, transforma-me em escritor.

Pois, como disse Marcos Accioly: “As pessoas ou são crianças ou são adultos. Ser menino é outra coisa. Menino não é criança nem adulto e, sendo todas as idades, é sem idade. Por fora se conhece a criança ou o adulto. Menino é dentro.”

Parodiando o poeta pernambucano, posso dizer que “infância é dentro”.

E o que é dentro a gente inventa, amplia, modifica, reconstrói, e apaga.

O que houve de ruim na minha infância eu converto em adubo de minha ficção.

O que houve de bom, eu reconto para a Sofia, que teve a sua infância inventada pelos chineses, como diz a Marta.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Alívio em sal



E ela dizia:

"Não há pior saudade do que aquela antecipada, aquela que se planeja ou se espera sentir. E há também o medo de nem sentir. Então o que seria perder? A saudade de uma presença viva dói muito mais do que a ausência porque somos vis em perder-nos. Eu tento despedir-me das minhas autópsias pois elas não podem mais ocupar meus preciosos espaços, e não posso não sentir saudades e nem o vazio porque ele compõe minhas vagas esperanças. Sou das fraquezas conscientes, que me tornam forte. Sou das forças inconsequentes, que me tornam fraca. Sou forte e fraca, amarga e doce, e ainda assim não sei sentir saudades antes da hora porque ela vai me matar. A maturidade traz em sua trilha uma certa raiva da vida, como se fizésse-nos finalmente ceder a ela e aos nossos impulsos por algo maior que a vida nos promete mas parece que nunca cumpre. Não há pior saudade do que tudo que ainda está aí. Não há pior saudade do que a que sinto dessa pessoa que sou hoje e sei que um dia será engolida pelo tempo. Eu luto."

Eu fechei o livro e finalmente consegui chorar.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Carta para mim


E não é que o pai tinha razão? Eu realmente achava que seria sempre estranha, sempre desengonçada e que os guris sempre iam rir de ti, mesmo já grande como estás, por tu seres magrela como eu e que nem precisaria usar sutiã, como eu. E aconteceu o que ele disse. Tu ficou bonita, não ficou? Ah, diga que ficou e que tu perdeu essa mania da gente de sempre se achar mais ou menos e não enxergar tua beleza!

Hoje tu estás aí, toda adulta e grande. Psicóloga, como tu sempre sonhou. Estás conseguindo simplesmente "ajudar as pessoas" como eu sempre quis? Espero que não tenhas te tornado uma chata, aquelas psicólogas frescas que ficam enrolando e não falam nada de prático. Estás conseguindo ter tua casa, teu emprego e tua vida como o sonhado? Ok, já vi que a vida de agora não permite que tu tivesse cumprido meu ideal de ter filhos antes dos 30, tudo bem. Mas espero que tu não tenha perdido a certeza que eu sempre tive de que a gente seria uma ótima mãe. Seremos, não?

Eu fico te observando daqui de longe e sei que tu sentes a minha falta, que tu vem aqui quietinha, sem alarde, me espiar um pouco de vez em quando, só para não esquecer como é bom ser criança, né? Pode vir sempre que tu quiser, mas não esquece o quanto tu quis ser adulta, o quanto tu quis chegar onde tu chegou. Sim, obviamente as coisas não estão sendo exatamente como a gente imaginava, né? Fico te olhando daqui e pensando que realmente as pessoas nos confundem, os sentimentos não são mais tão óbvios como a gente pensa. Pessoas se perdem, perdem coisas. Os adultos complicam tanto... Tudo quem sabe pode ser, tudo talvez seja,.... Um saco.

Deixa eu só te dizer: a gente gosta de comer banana com leite puro, a gente gosta de fazer sons engraçados com a boca, a gente gosta de tocar flauta no banheiro porque o eco fica legal. A gente gosta de brincar de secretária e de paquita. Não esquece, tu nunca quis ser a Xuxa.

Agora vai lá que tu tens que trabalhar e eu preciso brincar. A vida é sempre séria e sempre uma piada. A gente não é a Barbie mas pode sempre fantasiar que é. Aliás, vi que tu encontrou o teu Ken, né? Tu nunca vai ser "feliz para sempre" como as nossas Barbies são, mas a tua história é de verdade. Imagina só, talvez tu até já tenha descoberto o que é amor de verdade! E não fica achando que a vida é mais simples para mim só porque ainda sou criança. Dá um trabalho enorme te ser criança, para poderes ser a mulher que tu te tornou.

Um beijo enorme, te cuida e seja o mais feliz que tu puderes...

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Cuidado ao chorar

Esse é das lágrimas, o maior mal:
Desaperceber que podem ser feitas
Muito mais de hábito do que de sal.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

poema da pele

Eu tenho braços largos
cheios de saudades infindas
Junto a meus internos pagos
e do que mais tu pintas

Sou poeta do corpo,
de tudo que nele mais habita
Preciso de vácuo e sorrisos,
pois não há em mim o que se repita

Mas cansa estar em minha pele
quando sei que sou só entranhas
porque nunca fiz dele façanhas
e não há nem quem por ele vele

Meu corpo companheiro
Onde sinalizo dor e medo
Faça de minhas unhas teu enredo
dessa pele assim, toda sem roteiro

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Vida espetáculo.


- Eu vivo um paradoxo que me congela: eu tenho medo que a vida cotidiana me roube da escrita, mas minha escrita se alimenta dessa mesma vida.  

- Esse não é um paradoxo, sabe por que? Porque a escrita não se alimenta dessa vida aparente, essa vida domesticada da qual tu achas que extrai tua fonte. A escrita verdadeira germina da vida selvagem, da vida paixão, vida sem regras, vida sem moral.

- Ok, mas eu não consigo viver essa vida. Eu vivo a vida domesticada mesmo!

- Perfeito. Eu também. Porque, na verdade, ninguém suporta viver nessa vida impulso que eu exaltei há pouco. Porque se todos a vivessem ela já não seria clandestina e nem selvagem! Seria vida comum. E ela precisa ser rara e incomum para poder ser sentida como voraz, errante e louca. É preciso viver a vida palco, roteirizada, para ter a vida bastidores, que é a que realmente interessa, que é a que nos faz respirar e escrever. Eu sei que a vida é um espetáculo sem chance para ensaio, mas eu acredito em coxias e em camarins.

- Mas existe mesmo esse lugar?

- Eatamente onde você está. Agora vai, entra em cena.