domingo, 30 de janeiro de 2011

O prêmio do esquecimento


Ela achava que vivia esquecendo das coisas. Se considerava atrapalhada e ansiosa, essa mulher. Enfrentando suas tempestades sem guarda-chuva, sem capa nem sapatos. Cansou de se encharcar sempre, de se atrapalhar sempre, e decidiu proteger-se das águas tentando antecipar os maus tempos. Achava que assim conseguiria manter-se mais alerta. Ela, que na verdade nem sabia que nunca havia aprendido a dura lição do esquecer.

Esquecer não é defeito. Esquecer não é negar. Esquecer é assumir a ingenuidade de que estamos vulneráveis mais e outra vez se não entendermos que a vida não é acaso. É escolha. Mas, ainda assim, não podemos prever nada. Esquecendo ou não, escolhendo ou não, não há previsão de tempos. Nem metereológicos, nem lógicos ou ilógicos.

Ela acreditava que poderia esquecer das suas enchentes se não lembrasse mais delas, se passasse seu tempo protegendo-se delas. Sempre cabisbaixa, seguiu em sua vida olhando para o chão para não ficar temendo o céu.

Então, acontecimento do destino ou do que vocês prefiram chamar, um grande temporal veio. Ela, tentando tanto ocupar-se de poças de suas antigas pequenas garoas, e de buracos e pedras do chão, nem ouviu o som dos trovões que anunciavam o perigo bem a sua frente. As chuvas vieram e derrubaram sua casa, destruíram seus móveis, levaram suas roupas, quase a afogaram. Enquanto enxergava impotente as águas levarem tudo que ela tinha, pensava em quantas coisas esquecera junto com o medo das tempestades. Quantas pessoas ela já quis, já perdeu, já não quis. Ela não vinha perdendo o medo das águas. Ela não vinha esquecendo nada. Vinha perdendo o gosto da vida e dos amores mal vividos e por isso mal esquecidos.

O sol voltou e secou tudo que havia sobrado. Secou suas pernas longas, seus cabelos loiros e a lição de que, na vida, não se esquece de nada. Vive-se recordando, revivendo, relembrando sempre que for preciso, para então finalmente esquecer.

Porque o esquecimento é um prêmio, que só recebe quem tem a coragem de viver as dores de suas memórias até o fim.

7 comentários:

Pedro disse...

É que às vezes simplesmente é mais fácil tentar esquecer as dores do que vivê-las até o fim.

Nádia Lopes disse...

"... Coragem de viver as dores e suas memórias ate o fim..." LINDO LU!!! Estava mesmo com saudade de te ler e me identificar..beijo grande...e que a gente aprenda a dançar na chuva e não se perder de medo...

Anônimo disse...

A gente sabe que se deparou com uma grande escritora ou um grande escritor no momento em que, a cada texto lido, temos a nítida impressão, quase a certeza, de que "aquele texto foi feito pra mim, ELE FALA DE MIM!"...e logo depois percebe que TODAS as pessoas que também o lêem têm esta mesma percepção.
Tratar de assuntos tão íntimos e singulares com uma universalidade que atinge a todos como se fossem alvos únicos daquele texto é pra Clarices (sei que tu gostas), é pra Lucianes. Não é, de jeito algum, pra qualquer uma!
Me avisa o dia que fores lançar teu livro de crônicas, teu livro de idéias, quero estar lá!
Amei este texto em especial!
(Elisa Boéssio)

Rubem Penz disse...

Excelente!
Abraços daquele que está te conhecendo agora,
Rubem

Anônimo disse...

Parabens!! Seu texto é excelente. Então vamos relembrar....este é o começo... (Rose Stock)

Henrique Crespo disse...

É preciso lembrar de esquecer. Nunca esquecendo que lembrar também é um jeito de virar a página.

Acabei lembrando de um trecho de uma música
"Eu perdi o meu medo
O meu medo, o meu medo da chuva
Pois a chuva voltando
Pra terra traz coisas do ar"

Anônimo disse...

A importância do esquecimento, para vivermos as dores até o fim, e não transformá-las em sofrimento! Genial, penso por aí também. Parabéns! Quero ler mais! Escreve! Escreve! Escreve!
(Guto)